O que leva um hoteleiro a ceder a um terceiro sua política tarifária e continuar responsável por toda operação e estrutura de custos? Desde a chegada da Oyo Hotels & Homes ao Brasil, no ano passado, a pergunta certamente passou pela cabeça de muitos profissionais de hotelaria. De fato, às vezes é difícil entender a escolha, mas vendo os empreendimentos hoteleiros que a rede indiana aborda, que necessitam de distribuição mais eficiente e investimentos em melhorias na infraestrutura, até que faz certo sentido. Mas tudo até a primeira página… e ao longo da reportagem o leitor vai entender a razão.

Na terceira reportagem produzida pelo Hotelier News sobre a atuação da Oyo no Brasil, continuaremos analisando a relação da empresa com os proprietários parceiros. Dessa vez, contudo, empregaremos um olhar diferente. A reportagem teve acesso ao contrato celebrado entre as duas partes e entrevistou advogados para se debruçar sobre suas cláusulas. Embora em muitos trechos o documento não difira de acordos hoteleiros de gestão e de franquia, os especialistas ouvidos o consideraram mais draconiano do que a média. Usando uma expressão da área jurídica, leonino.

Contratos leoninos são aqueles que garantem mais vantagens a uma das partes em detrimento da outra. Para advogados consultados pelo Hotelier News, o documento da Oyo carrega muitas dessas características, embora seja muito bem formulado e redigido. “Diria que acima da média”, afirma uma das fontes ouvidas pela reportagem, que preferiu não se identificar. “Agora, ele é bastante rigoroso com uma das partes (proprietários), impondo muitas obrigações a ela e aparando bem as arestas em favor da Oyo. Com isso, deixa poucos pontos de fuga para o hoteleiro nos casos de disputas judiciais”, completa.

Oyo - contrato 1

Ao assinar com a rede indiana, o proprietário cede integralmente ao parceiro 100% do inventário, bem como a gestão do tarifário, como mostram os artigos destacados em vermelho na imagem acima. Até aí, no que tange a oferta de quartos, nada muito fora do usual em contratos hoteleiros de gestão e de franquia. A grande diferença é que, nas relações entre as partes nos dois tipos de acordos citados, o franqueado/operador tem uma relação de parceria mais íntima para negociar os preços com a marca hoteleira, até por estar à frente da operação. 

Quando questionada pela reportagem sobre a política tarifária, a Oyo destaca que trabalha com o modelo de preços dinâmicos. “Temos atualmente um forte time de 15 profissionais da área de RM (Revenue Management). Entendemos como cada cluster, cidade e área funcionam e pensamos na melhor forma de maximizar a receita dos nossos proprietários”, diz a empresa, em nota. “Gostaríamos de esclarecer que apenas aumentar o preço dos quartos não ajuda neste caso e, em média, mantemos a diária média acima de R$ 100. Estamos trabalhando para maximizar a receita e a ocupação, e não apenas aumentar preços. Tivemos debates próximos com nossos proprietários parceiros, mostrando a eles aumento mensal de receita e de diária média – e eles estão satisfeitos com nossa estratégia”, acrescenta.

Não podemos cravar que a empresa esteja mentindo sobre a política tarifária, mas a afirmação não casa muito com a maneira como se comunica com o consumidor final nas redes sociais. Os anúncios mostram preços agressivos, bem abaixo do mercado. Mais ainda, numa rápida navegada no app da Oyo você encontra tarifas ainda mais baixas – e para diferentes períodos – do que os R$ 100 citados. Por fim, como mostramos na reportagem anterior, muitos donos de hotéis parceiros da rede indiana reclamam das tarifas praticadas (e de queda de lucratividade). Pior, como mostram as cláusulas acima, o contrato deixa o proprietário de mãos atadas.

Oyo - promoções e app_imagem

“Essencialmente, o contrato passa toda operação comercial para uma das partes, com o hoteleiro dando autorização para ele praticar o preço que quiser. Isso é um problema: para qualquer hotel, é preciso precificar a partir do custo por quarto”, diz um dos advogados ouvidos, com bastante contato com contratos hoteleiros. "Pelo documento, o ônus parece ficar só com o hoteleiro, com o bônus indo para as mãos da rede indiana. A prova disso é que o documento traz uma série de obrigações ao hoteleiro, enquanto as da rede indiana se limitam a uma única cláusula (número 4) com apenas seis itens", completa.

O software da Oyo

O contrato também traz outras cláusulas consideradas leoninas pelos advogados ouvidos pelo Hotelier News. Uma delas se refere à plataforma da rede indiana, que o proprietário se compromete a utilizar. No item 5.4, a empresa praticamente lava as mãos sobre a operação do software. “O estado da técnica não permite a elaboração de programas de computador totalmente isentos de vícios ou defeitos e que, assim sendo, a OYO não pode garantir que o Software operará ininterruptamente ou livre de vícios ou defeitos”. Na sequência, continua tirando o corpo fora, mesmo tendo todos os canais de venda do hotel em sua mão – à exceção do balcão.

“A OYO isenta-se expressamente de quaisquer responsabilidades e indenizações, perdas e danos, lucros cessantes, prejuízos de quaisquer espécies, ou sob quaisquer títulos, perdas de negócios, perda ou extravio de dados, ou quaisquer outros danos acidentais, especiais, consequenciais ou punitivos, decorrentes da utilização dos softwares que compõem o sistema oyo, causados ao hotel ou a terceiros.” Trocando em miúdos, com o software fora do ar, o proprietário parceiro perde vendas, como destaca o advogado ouvido pela reportagem, que reforça o caráter leonino do contrato.

“Essa é uma cláusula de limitação de responsabilidade totalmente questionável no âmbito do Direito brasileiro, ainda mais se considerando a incidência do Código de Defesa do Consumidor. Na medida em que desenvolveu e implantou o software, a Oyo tem a obrigação legal de zelar pelo bom funcionamento e pela segurança da plataforma”, comenta. “Ao hotel, durante o período de mau funcionamento, deveria ser facultada a utilização de algum outro canal de reservas, afinal foi mantida uma exclusividade com a Oyo”, acrescenta.

No capítulo nove, que trata de Reconciliação e Auditoria, outras cláusulas chamam atenção. No item 9.3, o contrato é expresso em dizer que, “constatado em auditoria o descumprimento do dever do Hotel de inserir no Sistema OYO todas as reservas com respectivos check ins e check outs”, o hotel é multado. No caso de reincidência, a rede indiana tem a prerrogativa de rescindir imediatamente com o hoteleiro. Para piorar, na cláusula 9.3 o texto diz que, caso o conflito não possa ser resolvido, a demanda deve ser levada à arbitragem.

“Ou seja, errou uma vez punição, duas vezes rescisão. E, para eventuais disputas judiciais, a rede fala em arbitragem. Geralmente, essa jurisdição é reservada para disputas de valores grandiosos, o que tudo indica que não é o caso aqui”, afirma um dos advogados ouvidos pelo Hotelier News. “Então, pelo contrato, a empresa parece querer se preservar. Muitas das causas devem envolver valores próximos a R$ 10 mil e com isso mal se paga a hora do árbitro. Não faz sentido. E a Oyo não vai querer, ela própria, provocar a jurisdição arbitral para discutir valores, já que poderá compensá-los ou descontá-los no próximo mês. Afinal, gerencia o sistema de pagamentos. Está com a faca e o queijo na mão”, completa.

Responsabilidades desiguais

Ou seja, pelo contrato, apenas uma das partes pode punir, multar e rescindir imediatamente. O desequilíbrio entre direitos e obrigações fica ainda mais nítido no capítulo 12, que trata de Indenizações (veja abaixo). Na avaliação de um dos advogados ouvidos, toda essa cláusula é bastante desigual para os casos de judicialização por parte de terceiros, como o consumidor final. Ele, inclusive, cita um exemplo que deixa isso mais palpável.

Oyo - contrato 2_cláusula 12

“Imagine que ocorra um caso de overbooking. Neste caso, o proprietário não tem relação nenhuma com o ocorrido, visto que toda a distribuição e comercialização de quartos ficam a cargo da Oyo. Ainda assim, pelo que se vê nas cláusulas, o operador pode ser acionado", exemplifica. “Em outros casos, o consumidor que teve seus direitos lesados pode tranquilamente incluir a Oyo, como integrante da cadeia de fornecimento de serviços, no polo passivo de uma ação judicial, mas, como mostra o item 12.7 do contrato (veja acima), o operador é obrigado a pagar custos processuais, além de indenizar a rede indiana, em caso de derrota na Justiça. Parece um é mecanismo para que a rede nunca sair perdendo”, acrescenta.

Outro exemplo: em caso de sinistro dentro do estabelecimento, dependendo das circunstâncias, o operador poderá ser responsabilizado civilmente. Novamente, nada impede que a autora da ação tente arrolar a marca hoteleira no processo. “É por isso que contratos hoteleiros de gestão e de franquias exigem seguro de responsabilidade civil. Alguns são milionários e afastam investidores. Pode ser essa uma das razões de se ver contratos sendo assinados com tanta rapidez na Oyo, visto que essa exigência é retirada”, comenta um dos advogados ouvidos pela reportagem. “Confesso que essa cláusula de indenização à rede sem pedido de seguro obrigatório nunca tinha visto na hotelaria”, completa.

O Hotelier News destaca que não faz nenhum juízo de valor sobre o contrato da rede indiana, apenas apresentando aos leitores o olhar dos advogados consultados. A reportagem ressalta também que obteve o contrato, que tem cláusulas de confidencialidade entre as partes, por meio de uma ação judicial que corre no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Mais ainda, o documento não foi obtido a partir de contato com o autor do processo, mas a partir do monitoramento de ações judiciais com o nome da Oyo na Justiça. A chuva de reclamações de hotéis parceiros apurada nas reportagens anteriores motivou a decisão de fazer a pesquisa.

Olhando para todo esse conjunto de capítulos e cláusulas, não é exagero qualificar o contrato da rede indiana como leonino. Agora, ele não deve ser o único no mercado – e isso vale não só para a hotelaria. Há cláusulas e acordos desiguais em obrigações e direitos nos mais diferentes segmentos da economia brasileira. Mais ainda, é fácil ver como o escritório contratado pela empresa fez um excelente trabalho para blindar seu cliente de possíveis problemas legais. Lembra do começo da reportagem? O documento é muito bem formulado e redigido. Agora, assina quem quer, certo?

Oyo - contrato_capaRede indiana sofre questionamentos, mas mantém sua expansão no mercado

Em conversa com hoteleiros experientes e líderes de redes nacionais e internacionais consolidadas no mercado, a reportagem ouviu coisas interessantes sobre esse ponto em especial. Um deles falou uma coisa certa: contratos desse tipo envolvem dois adultos e pessoas capazes. “Se assina sem ler, fica difícil de querer contestar na Justiça”, argumenta. E, de fato, ele tem toda razão. 

No entanto, há um ponto importante: a rede indiana aborda investidores com perfil muito diferente do que esse mesmo alto executivo está habituado a lidar. Muitos dos proprietários entrevistados nas matérias anteriores disseram nem ter consultado advogado. Mais ainda, muitos deles admitiram não ter lido o documento integralmente, o que pode ser reiterado pela rápida expansão da rede no país. “Então, embora não haja nenhuma ilegalidade, pode-se falar em certa má fé em algumas cláusulas”, avalia um dos advogados ouvidos. 

A mensagem final dessa reportagem é que um advogado experiente fatalmente recomendaria seus clientes a avaliar com cuidado uma eventual assinatura de contrato com a Oyo. Há, sim, cláusulas que impõem mais obrigações e responsabilidades aos proprietários do que o contrário. Só a consulta com um profissional de direito pode deixar os hoteleiros ciente dos riscos envolvidos para, quem sabe, tentar buscar um acordo mais paritário – embora seja difícil, apontam as fontes ouvidas. Voltando à pergunta que abre essa matéria, e olhando para o contrato como um todo, ainda fica muito difícil respondê-la. Aparentemente, a pele de leão consegue cobrir inteiramente esse unicórnio…

(*) Crédito da capa: Montagem/Hotelier News

(**) Imagens dos contratos: extraído da internet

(***) Crédito da foto: Montagem/Hotelier News